Compliance e Governança no Futebol: o exemplo que clubes superavitários podem fornecer às pequenas, médias e grandes corporações.

Por Matheus Kniss Pereira

Especialista em Direito Empresarial

 

Compliance, em poucas palavras, é o ato de se agir de acordo com determinadas ordens, conjuntos de regras e normas ou condutas preestabelecidas. O termo deriva do inglês to comply, que não significa outra coisa senão cumprir, atuar em cumprimento de dadas determinações. No Direito Corporativo, o instituto do compliance é intimamente conectado com normas de Governança Corporativa, com o objetivo, em regra, de evitar que decisões permaneçam concentradas nas mãos de uma pessoa só.

A Operação Lava-Jato, no Brasil, catapultou certos conceitos atinentes às atividades empresariais, ao descortinar formas de distribuição estruturada de propinas a agentes públicos. Porém, como se viu, a existência de programas sólidos de compliance e Governança Corporativa não atrai necessariamente os efeitos que deles se espera. É necessário que sejam capazes de refrear atos, mitigar os seus efeitos e blindar as organizações.

Outra instituição recentemente envolvida em escândalos de corrupção é a CBF, cujas controvérsias são sempre noticiadas, ainda que possua rígidos sistemas de compliance e Governança. É a ausência de controle interno efetivo que redunda em circunstâncias que não afetam apenas os agentes, como também a instituição.

Alguns clubes do futebol brasileiro, porém, absorveram depressa tais conceitos e passaram a colher os frutos de gestão sustentável e responsável. O Palmeiras, por exemplo, instituiu, a partir do primeiro ano de mandato do ex-presidente Paulo Nobre, rígido controle financeiro; as cotas televisivas não foram adiantadas e as dívidas foram saldadas antes da internalização de novos gastos. De 2013 em diante, são 8 (oito) títulos, sendo dois deles a Copa Libertadores. Outro exemplo de sucesso é o Flamengo, que instituiu normas transicionais e contou com a seriedade dos seus dirigentes para alçar voos mais amplos, conquistando 10 (dez) troféus. Não por outro motivo, Palmeiras e Flamengo têm praticamente monopolizado as disputas dentro de campo de 2014 a 2021.

De outro modo, o Cruzeiro sofreu as consequências de problemas gravíssimos de gestão. A despeito dos títulos conquistados na década de 2010 a 2020, rebaixado à Série B, o Cruzeiro enfrenta problemas para a inscrição de novos jogadores, em razão de uma punição que lhe foi imposta pela FIFA por falta de pagamento.

Responsabilidade e sustentabilidade, porém, não são sinônimos de contenção de gastos. Desde 2015, o Palmeiras contratou mais de 51 (cinquenta e um) atletas, alguns cujos passe e salário eram considerados caros para a realidade brasileira. O Flamengo não fica atrás; atletas de renome, inclusive do futebol europeu, foram incorporados ao elenco nos últimos 7 (sete) anos, sem ferir a austeridade. A política envolvendo Palmeiras e Flamengo, todavia, nem sempre foi tão pacífica, transparente e funcional, tampouco a de outros clubes grandes, ricos ou emergentes, como Atlético-MG e Athletico-PR.

Os modelos de gestão de Flamengo e Palmeiras vêm sendo elogiados nos últimos anos, principalmente por especialistas do mercado financeiro e de private banks, como o Itaú BBA. Mas o que Palmeiras e Flamengo fazem que torna suas gestões tão especiais, vencedoras, controladas e principalmente elogiadas? E mais: tais modelos são restritos às grandes corporações ou aos grandes clubes do futebol?

O que aconteceu e continua acontecendo com o Cruzeiro é reflexo de sistemas de compliance e Governança que não foram executados. Seus anteriores dirigentes, que atuaram individualmente e não seguiram a regra de to comply, prejudicaram a instituição.

Com a autorização concedida pela Lei n. 14.193/2021, os clubes de futebol podem aderir à forma de sociedades anônimas (SAF), com suas particularidades. A tendência, com a introdução do modelo no futebol, é que as normas de Governança se tornem ainda mais vantajosas; aos poucos, o futebol brasileiro enxergou a necessidade de tornar empresariais as gestões dos seus clubes.

Eventualmente, o que pode parecer burocracia pode ser a razão pela qual determinadas empresas têm sucesso e outras não. Os clubes que possuem estruturas rígidas e as levam a sério costumam possuir Diretoria Executiva, Conselho Deliberativo, Conselho de Fiscalização, entre outros tantos órgãos.

A multiplicidade de órgãos de fiscalização, controle e gestão quer garantir, como dito no início deste artigo, que as decisões envolvendo a empresa não sejam tomadas por uma única pessoa. As melhores normas de Governança, inclusive, dispõem sobre a pulverização do processo decisório. Esses são aspectos que elevam a confiabilidade do mercado e asseguram que a empresa não estará submetida à arbitrariedade de um alguém, mas será gerida por vários alguéns.

No entanto, os clubes de futebol brasileiros, no passado e em especial na década de 1990, tiveram exemplos de gestões vitoriosas, mas cheias de inconsistências. Quatro são os exemplos clássicos: Corinthians, Palmeiras, Cruzeiro e Vasco.

Alberto Dualib (1919-2021) foi presidente do Corinthians entre 1993 e 2007, por 4 (quatro) mandatos consecutivos, conquistando 13 (treze) títulos em 14 (quatorze) anos de mandato. Mustafá Contursi foi presidente do Palmeiras entre 1993 e 2005, conquistando 12 (doze) troféus. Zezé Perrella comandou o Cruzeiro de 1995 a 2002 e, após, de 2009 a 2011; sob a sua gestão ou imediatamente após assumir o cargo, a Raposa foi campeã de 15 (quinze) campeonatos. Antônio Soares Calçada (1983-2001) presidiu o Vasco da Gama entre 1992 e 2001, e foi sucedido pelo icônico Eurico Miranda (1944-2019), que esteve à frente do cruzmaltino entre 2001 e 2007, retornando em 2014 e permanecendo até 2018. Eurico foi, porém, vice-presidente do Vasco entre 1986 e 2001, assumindo a presidência após o falecimento de Calçada, podendo-lhe, assim, ser atribuído parte do sucesso do Vasco na década de 1990. As duas gestões conquistaram 15 (quinze) títulos.

Os exemplos de Corinthians, Palmeiras, Cruzeiro e Vasco são importantes, nesta análise, para que fique claro que gestões que não são transparentes e que não garantem a necessária alternância de poder também funcionam, mas seu prazo de sucesso se esvai eventualmente e as consequências podem ser devastadoras.

Dualib, no Corinthians, foi acusado de má gestão, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e outros crimes. Mustafá, no Palmeiras, de emissão de notas frias com a utilização da estrutura do clube e cambismo. Em 2020, o Cruzeiro, que foi rebaixado à Série B em 2019 após contrair dívidas bilionárias durante a gestão de Wagner Pires de Sá, excluiu 30 (trinta) conselheiros que foram remunerados durante tal gestão, dentre os quais Gustavo Perrella, filho de Zezé. Eurico também se envolveu em polêmicas e foi acusado pela CPI do Futebol de falsidade ideológica, apropriação indébita, delitos eleitorais e contra a ordem tributária. A CPI indiciou, no total, 17 (dezessete) pessoas, incluindo Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF, e o próprio Eurico. Todos os clubes citados já amargaram pelo menos um rebaixamento à Série B do Brasileiro, sendo que Vasco e Cruzeiro, recém-rebaixados, ainda não retornaram à elite do futebol nacional.

Em 2022, o Cruzeiro, transformado em SAF, foi adquirido por Ronaldo Fenômeno por R$ 400 milhões. O Botafogo também foi convertido em SAF e recebeu uma proposta de aquisição por parte de Eagle Holdings, o mesmo grupo gestor do Crystal Palace, clube inglês que tem o francês Patrick Vieira como treinador. As SAF, aliás, possuem regras semelhantes ou análogas às aplicáveis às sociedades anônimas tradicionais, com regência supletiva pela Lei das S.A.; significa dizer que a lei optou por importar para as agremiações esportivas a austeridade comumente aplicada a esse modelo societário, como condição de profissionalização.

Importante destacar que somente Palmeiras e Flamengo arrecadaram mais de R$ 1 bilhão em 2021, o que expõe a crise financeira à qual está o Cruzeiro submetido. Neste momento, Ronaldo reestrutura todo o clube para fazer frente às  suas obrigações e suspender o embargo imposto pela FIFA.

Tem-se, assim, que as equipes de futebol que melhor se estruturaram na década de 2010 obtiveram rápidos benefícios. Austeridade e sustentabilidade são essenciais, mas os estatutos sociais e o fim do loteamento dos clubes por pequenos grupos de administração, somados ao estímulo e à aplicação prática da alternância de poder, são exemplos que podem ser importados e implementados por pequenas, médias e grandes sociedades empresárias.

Não é demais reforçar que, de um modo geral, tudo que funciona em grande escala pode ser adaptado para a  pequena escala. Grandes conglomerados econômicos, como Microsoft, Apple e Tesla, nasceram de forma modesta e conquistaram o seu espaço no mercado com bons ciclos de gestão.

Bill Gates deixou em 2008 o cargo de CEO da Microsoft, companhia que fundou, alegando que queria mais tempo para dedicar-se à filantropia. Steve Jobs (1955-2011), Steve Wosniak e Ronald Wayne fundaram a Apple, mas Jobs foi o CEO da companhia atualmente dirigida por Tim Cook apenas entre 1997 e 2011, e também se retirou voluntariamente da administração pouco antes do seu óbito.

O BASDA é um escritório de advocacia especializado na estruturação de sociedades empresárias, operacionais ou de investimento, e na construção de acordos multilaterais entre sócios e acionistas, normas de governança corporativa e compliance.

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