Simples Nacional: Usufruto de Quotas de ME e EPP por Pessoa Jurídica

Por Maxwell Lima Dias

Advogado e membro da OAB/PR desde 2016.

 

O presente artigo tem por fim discutir a possibilidade de Microempresas (ME’s) e Empresas de Pequeno Porte (EPP’s), de cujas quotas seja usufrutuária outra pessoa jurídica, optarem pela tributação simplificada do Simples Nacional, e entender qual o posicionamento da Receita Federal do Brasil sobre o tema.

 

  1. INTRODUÇÃO

 

Sabe-se que as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, de cujo capital social participe outra pessoa jurídica, não poderão gozar dos benefícios previstos na Lei Complementar nº 123/2006. É o que determina o art. 3º, §4º, inciso I, da LC 123/06:

 

Art. 3º (…)

  • Não poderá se beneficiar do tratamento jurídico diferenciado previsto nesta Lei Complementar, incluído o regime de que trata o art. 12 desta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica:

I – de cujo capital participe outra pessoa jurídica;

 

Acontece que a LC 123/2006, em nenhum momento, refere-se ao usufruto de quotas de microempresas e empresas de pequeno porte por outra pessoa jurídica. Não há qualquer menção na lei sobre a impossibilidade de serem concedidos os benefícios previstos na Lei Complementar à microempresa ou empresa de pequeno porte, de cujas cotas sejam usufrutuárias outra pessoa jurídica.

 

Não é isso, contudo, que entende a Receita Federal do Brasil, a qual já se manifestou ser impossível Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, de cujas quotas sejam usufrutuárias outra pessoa jurídica, poder optar pela tributação simplificada do Simples Nacional.

 

Veremos, então, que o problema ora exposto, resume-se à uma questão de hermenêutica, em que a possibilidade ou impossibilidade de a microempresa ou empresa de pequeno porte, de cujo capital seja usufrutuária outra pessoa jurídica, gozarem dos benefícios previstos na LC 123/06 dependerá da exegese do aplicador do direito.

 

  1. POSICIONAMENTO DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL

 

A interpretação da Receita Federal do Brasil acerca do tema, naturalmente, vai de encontro aos interesses do contribuinte. De acordo com o entendimento exarado pela Receita na Solução de Consulta – Cosit nº 190/2014, a gravação de usufruto sobre quotas de sociedade limitada configura modalidade de participação no capital, para os efeitos do Simples Nacional.

 

  1. Em princípio, portanto, em linha com o senso comum, participantes do capital social são os sócios, os proprietários das quotas. Proprietário é aquele que tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa (quota), e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha (art. 1.228 do Código Civil).

 

  1. As quotas conferem ao seu proprietário, basicamente, o direito a parcela dos lucros (arts. 997, inciso VIII, 1.007 e 1.008) e a tomar parte na administração da sociedade (arts. 1.010, 1.013, 1.019, 1.060) e das deliberações (arts. 1.071 a 1.080). Cabe a ele, também, é claro, o eventual ganho decorrente da alienação das quotas ou da liquidação da sociedade.

 

  1. Na hipótese em que o sócio venha a ceder o usufruto de suas quotas, o usufrutuário, passa a ter direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos dessas quotas (art. 1.394 do Código Civil), conforme disponha o contrato de usufruto. Permanece o nu-proprietário (sócio), entretanto, com o poder de dispor das quotas (ceder, alienar).

 

  1. Em regra, dessarte, o usufrutuário participa dos lucros da sociedade e pode tomar parte da administração e das deliberações de sócios (veja-se o art. 114 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e o Manual de Registro – Sociedade Limitada, aprovado pela Instrução Normativa DREI nº 10, de 10 de dezembro de 2013, item 2.2.2.4 – Usufruto), sem prejuízo do que mais venha a ser estipulado no ato de constituição do gravame.

(…)

  1. De todo o apresentado, constata-se que, no conjunto de direitos que a legislação civil atribui ao usufrutuário de quotas de sociedade limitada, estão contidos os principais elementos caracterizadores da condição de sócio (proprietário das quotas) da pessoa jurídica. É licito afirmar, por isso, que o usufruto de quotas configura modalidade de participação do capital de microempresa ou empresa de pequeno porte, para os efeitos do Simples Nacional.

 

Segundo, portanto, o posicionamento do Fisco, as ME’s ou EPP’s de cujas quotas seja usufrutuária outra pessoa jurídica, não poderão optar pelo regime de tributação simplificada do SIMPLES NACIONAL, pois o usufruto das quotas da sociedade configuraria modalidade de participação no capital social da empresa.

 

Em que pese o entendimento da Receita Federal do Brasil, entendemos que o usufruto não configura modalidade de participação societária, pois não pode ser aquele direito equiparado ao instituto da propriedade.

 

  1. POSICIONAMENTO DO BASDA E AMPARO LEGAL

 

O Código Civil brasileiro prevê, taxativamente, em seu artigo 1.225 os direitos reais existentes em nosso ordenamento jurídico. São eles: a) a propriedade; b) a superfície; c) as servidões; d) o usufruto; e) o uso; f) a habitação; g) a promessa de compra e venda do imóvel; h) o penhor; i) a hipoteca; j) a anticrese; k) a concessão de uso especial para fins de moraria; l) a concessão de direito real de uso; e m) a laje.

 

Ao assim prever, o referido dispositivo explicita a intenção do legislador em distinguir o direito de propriedade do direito de usufruto. Tanto é, que no decorrer do Código Civil o legislador deu tratamento distintos a ambos. Enquanto o Título III trata da propriedade, o usufruto é regulado pelo Título VI, do Código.

 

Não há de se negar a semelhança entre ambos os direitos. Ora, por isso ambos são classificados como Direitos Reais. No entanto, não podem ser considerados iguais. Sequer possuem o mesmo tratamento dado pelo Código Civil. Assim, podemos dizer que o usufruto e a propriedade possuem o mesmo gênero (direitos reais), mas consitutem espécies distintas de direito.

 

Conforme dispõe o art. 1.228 do Código Civil, a propriedade dá ao seu titular “a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.

 

Já o usufruto, nos termos do art. 1.394 do Código Civil, dá ao seu titular o direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos. Não é permitido, no entanto, ao usufrutuário dispor da coisa, isto é, alienar, ceder ou transferi-la a terceiros.

 

Assim, enquanto a propriedade dá ao seu titular o direito de fazer o que bem  entender com a coisa, nos limites da função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII), o usufruto não permite que o seu titular possa ceder ou alienar a coisa.

 

Esta diferenciação é de suma importância para o Direito Societário, haja vista o grande número, nos últimos anos, de famílias que se estruturam por meio de sociedades para transmitir a propriedade de seu patrimônio aos seus herdeiros/legatários e adiantar, assim, a quota parte a que cada um possui direito.

 

Nestes casos, em geral, os genitores transferem a propriedade das quotas a seus herdeiros/legatários, na exata proporção a que estes tem direito à legítima/legado, reservando àqueles o usufruto das quotas. Assim, gravados os bens com usufruto, não poderá o usufrutuário dispor do bem em detrimento do nu-proprietário. Apenas este poderá dispor do bem de sua propriedade.

 

Vê-se, pois, que o próprio legislador quis distinguir o direito real à propriedade do direito real ao usufruto. Deste modo, não pode o Estado amesquinhar a explícita vontade da lei e distorcer o seu alcance para criar nova obrigação tributária não prevista em lei.

 

É o que dispõe o art. 110 do Código Tributário Nacional:

 

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

 

Os conceitos de ‘propriedade’ e ‘usufruto’ trazidos pelo Direito Privado, como já vimos, estão atrelados às faculdades inerentes ao exercício destes direitos. Enquanto ao titular do direito de propriedade lhe é permitido usar, gozar e dispor da coisa, bem como o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, ao usufrutuário é permitido usar, gozar e administrar a coisa.

 

Neste sentido, conceitua Carlos Roberto Gonçalves o direito de propriedade:

 

“O direito de propriedade é aquele que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar.

 

Considerando apenas os seus elementos essenciais, enunciados no art. 1.228 retrotranscrito, pode-se definir o direito da propriedade como  o poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar, e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como de reinvindicá-lo de quem injustamente o detenha”.

 

Assim dispõe o art. 1.228:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

 

Já o usufruto, ainda sob a análise do ilustríssimo autor, pode ser assim conceituado:

 

“Caracteriza-se o usufruto, assim, pelo desmembramento, em face do princípio da elasticidade, dos poderes inerentes ao domínio: de um lado fica com o nu-proprietário o direito à substância da coisa, a prerrogativa de dispor dela, e a expectativa de recuperar a propriedade plena pelo fenômeno da consolidação, tendo em vista que o usufruto é sempre temporário; de outro lado, passam para as mãos do usufrutuário os direitos de uso e gozo, dos quais transitoriamente se torna titular.”

 

O usufruto está previsto no art. 1.390 e seguintes do Código Civil, e a sua temporariedade decorre do disposto no art. 1.410, também do Código Civil:

 

Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.

Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis:

I – pela renúncia ou morte do usufrutuário;

II – pelo termo de sua duração;

III – pela extinção da pessoa jurídica, em favor de quem o usufruto foi constituído, ou, se ela perdurar, pelo decurso de trinta anos da data em que se começou a exercer;

IV – pela cessação do motivo de que se origina;

V – pela destruição da coisa, guardadas as disposições dos arts. 1.407, 1.408, 2ª parte, e 1.409;

VI – pela consolidação;

VII – por culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo com os reparos de conservação, ou quando, no usufruto de títulos de crédito, não dá às importâncias recebidas a aplicação prevista no parágrafo único do art. 1.395;

VIII – Pelo não uso, ou não fruição, da coisa em que o usufruto recai (arts. 1.390 e 1.399)

 

Percebe-se, portanto, que o usufruto possui caráter temporário,pois se extingue com a morte do usufrutuário ou no prazo de 30 anos, se constituído em favor de pessoa jurídica, e esta não se extinguir antes. Desfigura-se o usufruto se lhe for atribuída a perpetuidade. Trata-se de mais uma diferença entre o insituto da propriedade e o do usufruto. Aquele é perpétuo, enquanto este será sempre temporário.

 

Assim, em se tratando de usufruto de quotas de ME ou EPP instituído em benefício de pessoa jurídica, desaparecerá o usufruto com a extinção da pessoa jurídica, ou após o decurso de 30 anos desde a gravação das quotas com o usufruto. Caso a pessoa jurídica fosse proprietária das quotas da ME ou EPP, não existiria qualquer previsão de termo final para cessar o seu direito de propriedade. E a extinção da pessoa jurídica não poria fim à propriedade, sendo esta transferida ao(s) sucessor(es) daquela.

 

Diante disso, não há de se falar em equiparação de ‘propriedade’ e ‘usufruto’, visto que se tratam de institutos distintos, que produzem efeitos distintos. O próprio Código Civil distingue-os.

 

Vê-se, pois, que o legislador quis distinguir o direito real à propriedade do direito real ao usufruto. Deste modo, não pode o Estado amesquinhar a explícita vontade da lei e distorcer o seu alcance para criar nova obrigação tributária não prevista em lei.

 

É o que dispõe o art. 110 do Código Tributário Nacional:

 

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

 

Se o Direito Privado determina que a propriedade dá ao seu titular a prerrogativa de dispor da coisa, e esta faculdade não se estende ao usufrutuário, não poderá a lei tributária, menos ainda o Estado-Fisco, distorcer o alcance e alterar o conceito destes institutos para criar obrigação ou proibição não prevista em lei.

 

Ademais, fica ainda mais evidente a impossibilidade de equiparar o conceito de usufruto com propriedade, quando ao usufrutuário das quotas da sociedade não é permitido o direito de voto nas deliberações sociais.

 

Nestes casos, em que o nu-proprietário, verdadeiro titular da participação societária, cede o usufruto a outrem, sem, contudo, transferir o seu direito de voto nas deliberações em Reuniões de Sócio ou Assembleia Geral, o usufrutuário não pode interferir em qualquer decisão da empresa, excluindo, assim, seu poder de administração, inerente à qualidade de sócio.

 

Assim, conforme determina o art. 110 do Código Tributário Nacional, não é dada à Receita Federal do Brasil a possibilidade de alterar o alcance e conceito de “propriedade’ e “usufruto”, ambos previstos no Código Civil e utilizados pela Constituição Federal, para impedir que Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, de cujas quotas seja usufrutuária (e não proprietária) outra pessoa jurídica, possam desfrutar dos benefícios concedidos pela Lei Complementar nº 123/06, que não prevê qualquer vedação neste sentido.

 

  1. CONCLUSÕES

 

Vê-se, portanto, que o entendimento exarado pela Receita Federal do Brasil, na Solução de Consulta – COSIT nº 190/2014 está em contradição com as normas vigentes em nosso ordenamento jurídico, sobretudo ao art. 110 do Código Tributário Nacional.

 

Não consistindo, pois, o Usufruto de quotas como modalidade de participação societária, poderá a Microempresa ou Empresa de Pequeno Porte, de cujas quotas seja usufrutuária outra Pessoa Jurídica, optar pela tributação simplificada do Simples Nacional, bem como gozar dos benefícios trazidos pela LC 123/06.

 

 

Curitiba, 29 de Junho de 2018.

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