O Abuso de Poder do Estado do Paraná na Limitação ao Crédito de ICMS Adquirido via SISCRED – Tabela Redutora

Por Maxwell Lima Dias, advogado no escritório Berehulka & Agostini Advogados Associados, especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, membro da OAB/PR desde 2016.

As operações de exportação de mercadorias, como se sabe, são imunes ao pagamento do Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (“ICMS”). Isto porque, a Constituição Federal, em seu artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “a”, prescreve que o imposto não incidirá sobre operações que destinem mercadorias para o exterior.

 

Por outro lado, objetivando conferir uma maior efetividade ao Princípio da Não-Cumulatividade, este mesmo dispositivo constitucional garante e assegura ao contribuinte exportador a manutenção e o aproveitamento do crédito do imposto gerado a partir da entrada de mercadorias e serviços em seu estabelecimento.

 

Em razão disso, muitas sociedades, na consecução de suas atividades, vêm acumulando créditos de ICMS relativos à aquisição de insumos utilizados em seus processos de industrialização de produtos a serem exportados.

A simples existência, contudo, de saldos credores de ICMS, em decorrência das atividades operacionais dos contribuintes, por si só, não permite concretizar o desígnio constitucional de Não Cumulatividade, uma vez que de nada adianta ser conferido o direito ao abatimento dos débitos se o contribuinte não possui débitos suficientes para a  esgotar o saldo credor, e não lhe é concedido o direito de resgatar tais valores.

 

Diante desta manifesta violação ao Princípio da Não Cumulatividade do ICMS (CF, art. 155, §2º, I), a Lei Complementar nº 87, publicada em 13 de setembro de 1996 (“Lei Kandir”), Lei de abrangência Nacional, que regula o ICMS, nos termos do art. 155, §2º, XII, da Constituição Federal, passou a prever em seu artigo 25, §1º, a possibilidade de o exportador, imune do imposto, conforme previsão constitucional, transferir o saldo credor do imposto, na proporção que estas saídas representem do total das saídas realizadas pelo estabelecimento, a outros estabelecimentos seus ou a terceiros:

 

Art. 25. (…)

1º Saldos credores acumulados a partir da data de publicação desta Lei Complementar por estabelecimentos que realizem operações e prestações de que tratam o inciso II do art. 3º e seu parágrafo único podem ser, na proporção que estas saídas representem do total das saídas realizadas pelo estabelecimento:

I – imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no Estado;

II – havendo saldo remanescente, transferidos pelo sujeito passivo a outros contribuintes do mesmo Estado, mediante a emissão pela autoridade competente de documento que reconheça o crédito.

 

Para os demais casos de saldos credores acumulados, que não decorrentes de exportação de mercadorias, a Lei Kandir, através do §2º do dispositivo acima referido, estabelece que, a partir de sua vigência, a lei estadual poderá permitir que: (i) sejam imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no Estado; ou (ii) sejam transferidos, nas condições que definir, a outros contribuintes do mesmo Estado.

 

Vê-se, pois, que a Lei Kandir, cuja abrangência é nacional, isto é, vincula a atuação legiferante de todas as ordens jurídicas parciais (União, Estados, Municípios e DF), objetivando complementar o dispositivo constitucional que concede imunidade aos exportadores (CF, art. 155, §2º, X, ‘a’) e dar plena eficácia ao Princípio da Não Cumulatividade (CF, art. 155, §2º, I), permitiu que os contribuintes do imposto transferissem os créditos acumulados em sua conta gráfica para demais estabelecimentos seus ou para terceiros, cabendo aos Estados cumprir esta determinação legal.

 

Comumente, as legislações ordinárias dos Estados dispõem que o crédito acumulado decorre da aplicação de alíquotas diversificadas em operações de entrada e de saída de mercadorias ou de serviços prestados, podendo ser transferido para estabelecimento de empresa interdependente, mediante prévio reconhecimento da interdependência pela Secretaria da Fazenda, ou ainda para terceiros[1].

 

Nesse sentido, o Estado do Paraná, em 12 de julho de 1996, publicou a Lei nº 11.580, que passa a prever, em seu art. 25, §6º, a transferência de créditos acumulados apurados na conta gráfica do sujeito passivo, conforme prescrito na Lei Kandir:

 

Art. 25 (…)

6º Na forma estabelecida em decreto do Poder Executivo, os saldos credores acumulados por estabelecimentos que realizem operações e prestações de que tratam o inciso II e o parágrafo único do art. 4º podem ser, na proporção que estas saídas representem do total das saídas realizadas pelo estabelecimento:

I – imputados pelo contribuinte a qualquer estabelecimento seu no Estado;

II – havendo saldo remanescente, transferidos pelo contribuinte a outros contribuintes deste Estado, mediante a emissão pela autoridade competente de documento que reconheça o crédito.

7º Nos demais casos de saldos credores acumulados, na forma estabelecida em decreto do Poder Executivo, permitir-se-á que:

I – sejam imputados pelo contribuinte a qualquer estabelecimento seu no Estado;

II – sejam transferidos a outros contribuintes deste Estado.

 

A fim de regulamentar o ICMS em seu território, e dar executividade à Lei nº 11.580/96, o Estado do Paraná publicou o Decreto nº 7.871/2017 (RICMS/PR), determinando que a transferência e utilização de créditos acumulados serão realizadas por meio do Sistema de Controle de Transferência e Utilização de Créditos Acumulados – SISCRED.

 

Neste caso, empresas exportadoras, isentas do ICMS, e empresas contribuintes sujeitas ao diferimento ou suspensão do imposto (ICMS), que acumulam mensalmente créditos de ICMS estão permitidas a habilitarem tais créditos no SISCRED e transferirem-nos a terceiros, para que demais empresas contribuintes possam compensá-los com débitos fiscais do imposto.

 

No entanto, o referido Decreto (RICMS/2017), em seu art. 51, III, determina que o contribuinte que mantiver créditos acumulados em conta gráfica adquiridos via SISCRED, somente poderá apropriar-se de tais créditos até o limite previsto na seguinte tabela:

 

 

O contribuinte que pretende apropriar em conta gráfica crédito adquirido via SISCRED, deverá basear-se no saldo devedor apurado no mesmo mês do exercício anterior ao da apropriação para encontrar o limite máximo de apropriação.

 

Note-se que o “valor-referência” é o saldo devedor de ICMS apurado no mesmo mês do exercício anterior. Logo, se no mês do exercício anterior foi constatado saldo credor, em que o crédito apurado tenha sido maior que o débito do imposto, não poderá o contribuinte apropriar-se do crédito adquirido via SISCRED.

 

Não é de difícil constatação, que tal vedação viola o Princípio Constitucional da Não Cumulatividade.

 

Antes de mais nada, como operadores do direito, necessário se faz apelarmos para a Hermenêutica Jurídica, para, assim, entendermos o real significado da Lei Estadual. Asim, considerando os dispositivos da Constituição Federal (Art. 155, §2º, I, e X, ‘a’), da Lei Kandir (art. 25, §1º e §2º), o art. 25, §§6º e 7º da Lei Orgânica do ICMS do Estado do Paraná deverão ser interpretados de forma sistemática e teleológica, de modo a se identificar qual a real “vontade” da lei e do ordenamento jurídico como um todo.

 

Da análise do art. 155, §2º, inciso X, ‘a’, que prevê a desoneração da exportação em relação ao ICMS e assegura ao exportador o aproveitamento do montante de imposto cobrado nas operações e prestações anteriores, e do inciso I, do mesmo dispositivo, que prevê o Princípio da Não Cumulatividade no âmbito do ICMS, tem-se que objetivo do Constituinte é a um só tempo (a) incentivar a política nacional de exportação, possibilitando que os bens e serviços remetidos para o exterior possam competir com os bens e serviços produzidos em outros países; e (b) dar efetividade ao Princípio da Não Cumulatividade, evitando que o exportador incorra em prejuízo em relação aos demais contribuintes do imposto, que podem aproveitar-se do montante de impostos pagos nas operações anteriores.

 

Tendo isso em vista, a forma mais correta de se aplicar a legislação tributária estadual, acerca da transferência de créditos de ICMS decorrente de operações de exportação, é através da interpretação conforme o texto constitucional.

 

Parece-nos, pois, que o aproveitamento dos saldos de créditos relativos à exportação de mercadorias não deveria condicionar-se a regras específicas e, muitas vezes restritivas, da legislação ordinária estadual. Realmente, como se trata de circunstância de natureza imunitória que obriga à plena e total desoneração do ICMS, o objetivo constitucional só poderá ser alcançado se o contribuinte (exportador) puder utilizar livremente os saldos acumulados de créditos, inclusive, transferindo-os para outros estabelecimentos ou terceiros.

 

Ademais, impende salientarmos que o Decreto n° 7.871/2017, bem como os Decretos que aprovaram o Regulamento de ICMS nos anos anteriores, inovou na ordem jurídica, trazendo limitações ao Princípio da Não Cumulatividade (CF, art. 155, §2º, I) Federal, bem como ao art. 25, §§1º e 2º da Lei Kandir, sem lei que as estabeleça.

 

Ocorre que, a exemplo do que ocorre na Constituição Federal e na Lei Kandir, inexiste em todo o texto da Lei Orgânica do ICMS no Estado do Paraná (Lei 11.580/96), bem como em qualquer outra, qualquer disposição, tênue que seja, que crie limitações à utilização mensal/anual dos créditos acumulados de ICMS obtidos por transferência via SISCRED.

 

Assim, se os créditos de ICMS adquiridos via SISCRED pela Impetrante provém de operações de exportação e são formalmente reconhecidos pela autoridade competente (por meio de habilitação prévia do crédito no SISCRED), e é dado ao contribuinte transferente o direito de repassá-lo a outros contribuintes do Estado, segue-se que não pode a estes ser negado o direito de usufruí-los mensal e anualmente no limite de sua necessidade, a fim de diminuir o montante a ser recolhido monetariamente a título de ICMS.

 

Tem-se, portanto, que nenhuma restrição adicional à utilização desses créditos pode ser imposta à contribuinte, nem mesmo por meio de lei estadual regulamentadora (e menos ainda por meio de decreto e resolução do Poder Executivo Estadual, tal como ocorreu), vez que a própria Lei Complementar não o fez, sob pena de se afrontar a legalidade tributária específica, insculpida no art. 155, § 2º, XII, “c” da Carta Magna Brasileira.

 

Por mais que seja facultado ao Chefe do Poder Executivo expedir decretos e regulamentos para garantir a fiel execução da lei, não é permitido que esses atos executivos exorbitem o poder regulamentar e se estendam para além dos limites da Lei, de sorte que essa prerrogativa não consiste em carta branca para a criação de novas condições para a utilização dos créditos adquiridos via SISCRED, tal como ocorreu no caso em tela.

 

Tanto é assim que o próprio Código Tributário Nacional, em seu art. 99, define que o conteúdo e alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais são expedidos, determinados com observância estrita das regras de interpretação estabelecidas na Lei. Assim, diante desse panorama, qualquer Decreto emanado pelo Estado do Paraná, inclusive o 7.871/2017, deveria se dar dentro dos limites da Lei Orgânica, da Lei Kandir e, sobretudo, do Texto Constitucional, os quais, em momento algum estipulam qualquer limitação à utilização de créditos acumulados adquiridos via SISCRED por parte do adquirente, e menos ainda em razão do saldo devedor de ICMS apurado no mesmo mês do exercício anterior.

 

De fato, absolutamente não cabe a um decreto regulamentador inovar a ordem jurídico-tributária sem base em lei que o fundamente, ou seja, estabelecer que o aproveitamento dos créditos de ICMS adquiridos via SISCRED somente é possível até o limite previsto no Regulamento, tendo-se por base o saldo devedor constante da EFD no mesmo mês do exercício anterior.

 

Mutatis mutandis, destaque-se que o próprio Superior Tribunal de Justiça, em caso análogo já se manifestou de maneira semelhante, consoante se extrai do RMS 18.835-MT, de Relatoria do Min. João Otávio Noronha:

 

“São ilegais as exigências inseridas em normativos editados no âmbito das Secretarias de Fazenda dos Estados que, a pretexto de criar um regime de controle das operações (…) acabam por restringir o exercício da garantia prevista no artigo 3º, inciso II, da LC n. 87/96, extrapolando os limites da simples regulamentação que lhes competia promover”.

 

Não há, portanto, qualquer previsão legal que possibilite ao Estado criar limitações na transferência de créditos de ICMS, tampouco na sua utilização por terceiro, também contribuinte do imposto, razão pela qual, é ilegal e inconstitucional a utilização da Tabela inserta no art. 51, III, do Decreto nº 7.871/2017, que prevê percentuais de utilização do crédito regularmente adquirido.

 

Trata-se, pois, de mais uma norma limitadora de direitos do cidadão, imposta pelo Poder Executivo do Estado do Paraná, e que muitos contribuintes, na sua boa-fé, desconhecem.

 

Para mais informações, acesse: www.basda.blog.br.

 

Curitiba, 14 de fevereiro de 2019.

 

[1] MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e Prática. 14. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 297.

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