Por Maxwell Lima Dias, advogado e Compliance Officer no escritório BASDA, especialista em Direito Tributário e Processo Tributário pela PUCPR, membro da Comissão de Precatórios da OAB/PR;
Introdução
Os sócios de uma empresa, via de regra, não podem ser responsabilizados pelas obrigações por ela contraídas. O artigo 50 do Código Civil, nesse sentido, determina que é possível que obrigações contraídas pela pessoa jurídica ultrapassem o seu patrimônio e atinjam a esfera patrimonial de seus sócios:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Este instituto é chamado de “Desconsideração da Personalidade Jurídica”, em que os sócios de determinada pessoa jurídica respondem pelas obrigações por esta contraídas em razão de terem agido com abuso de poder.
Vê-se, pois, que a Desconsideração da Personalidade Jurídica somente poderá ser decretada, por ordem judicial, mediante a realização do requisito previsto no artigo 50 do Código Civil: A prova ou, ao menos fortes indícios, de que o sócio teria agido com excesso de poderes, pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial entre a pessoa física do sócio e da empresa.
Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Tributário
Em se tratando, especificamente, de obrigação tributária, o Código Tributário Nacional, em seu artigo 135, confirma a excepcionalidade da responsabilização do sócio por débitos fiscais contraídos pela pessoa jurídica.
Segundo o artigo 135 do CTN, os sócios da empresa “são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”.
O dispositivo acima referido, assim como o artigo 50 do Código Civil, impõe como condição para a desconsideração da personalidade jurídica a ilicitude na conduta do sócio (excesso de poderes, infração à lei, contrato social ou estatuto da sociedade).
Assim, resta claro que em processos de Execução Fiscal contra a empresa, o sócio da pessoa jurídica somente poderá ser chamado ao processo, e ser responsabilizado pelos débitos fiscais da empresa, após o exequente (Estado-Fisco) comprovar ter agido o sócio com excesso de poderes ou em contrariedade com a lei, contrato social ou estatuto da empresa.
Impende ressaltar, aqui, que o mero inadimplemento da obrigação tributária não enseja a responsabilização do sócio. O simples fato de a empresa não ter recolhido o tributo não é suficiente para caracterizar excesso de poderes pelo sócio.
Esse é o entendimento consolidado da jurisprudência e, inclusive, sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ):
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO AOS SÓCIOS. NOME NA CDA. ART. 13 DA LEI Nº 8.620/93. INCONSTITUCIONALIDADE. AUSÊNCIA DAS HIPÓTESES DE REDIRECIONAMENTO PREVISTAS NO ART. 135 DO CTN. -Hipótese de execução de contribuições previdenciárias, em que a medida de inclusão dos sócios no pólo passivo da demanda depende, para sua adoção, do preenchimento dos requisitos de prática de ato com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto de que resultem obrigações tributárias. Inteligência do art. 135 do CTN. -A mera inadimplência não configura a hipótese legal de responsabilização dos sócios. Precedentes do E. STJ. -Inconstitucionalidade do art. 13 da Lei nº 8.620/93, que previa a responsabilidade solidária dos sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada. Precedentes do E. STF. –A inclusão do nome dos sócios na CDA, sem comprovação dos requisitos do art. 135 do CTN, não enseja o redirecionamento da execução. Precedentes da Corte. -Agravo da empresa não conhecido. -Agravo dos sócios provido. (TRF-3 – AI: 13526 SP 0013526-92.2012.4.03.0000, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL PEIXOTO JUNIOR, Data de Julgamento: 18/12/2012, SEGUNDA TURMA) (grifo nosso).
Súmula 430/STJ: O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente.
Diante disso, vê-se que a responsabilização do sócio pelos débitos fiscais contraídos pela pessoa jurídica é medida excepcional, devendo ser declarada por ordem judicial, por requerimento da parte ou do Ministério Público. Nos termos do artigo 50 do Código Civil, entende-se que a desconsideração da personalidade jurídica, de tão excepcional e gravosa que é, sequer poderá ser decretada pelo juiz ex officio.
No entanto, a autoridade fazendária, objetivando uma maior eficácia arrecadatória, encontrou uma maneira de desviar-se dos mandamentos normativos acima citados. Assim, achou o Estado-Fisco um meio para responsabilizar o sócio da pessoa jurídica pelas obrigações tributárias por esta contraídas, aumentando, assim, as chances de ter seu crédito saciado.
Antes mesmo de cogitar a execução fiscal da empresa, a autoridade fazendária, diante do inadimplemento da obrigação tributária pela empresa, lavra o Auto de Infração em face da pessoa jurídica e do seu sócio como corresponsável.
Ao constituir definitivamente o crédito tributário, inclui o nome do sócio e da pessoa jurídica na Certidão de Dívida Ativa. Não havendo ainda o cumprimento da obrigação tributária, o Estado-Fisco ajuíza Execução Fiscal em face da empresa e do seu sócio.
Acontece que, nesse caso, a responsabilização do sócio pelos débitos fiscais da empresa se deu sem qualquer apuração de ato ilícito por parte daquele. Não houve qualquer prova de que o sócio agiu com excesso de poderes ou em contrariedade a lei, contrato social ou estatuto, nos termos do artigo 135 do CT e do artigo 50 do Código Civil.
Dessa forma, tendo o Estado-Fisco já incluído o nome do sócio na Certidão de Dívida Ativa como corresponsável, ao ajuizar a Execução Fiscal em face dos responsáveis tributários (constantes na CDA), não precisará provar a legitimidade passiva do sócio executado.
Neste cenário, o ônus da prova recai ao sócio. Ou seja, cabe a este provar não ser responsável pela obrigação tributária objeto da Execução Fiscal. Caso não obtenha êxito em provar a sua ilegitimidade ad causum passiva, responderá com seu patrimônio por débitos fiscais contraídos pela sua empresa.
Da Ausência de Verificação da Responsabilidade do Sócio
Conforme explanado anteriormente, a responsabilidade do sócio por obrigação tributária da sociedade, conforme o artigo 135 do Código Tributário Nacional, depende de comprovação de ter o sócio agido com excesso de poderes ou com infração à lei, contrato social ou estatutos.
Assim, para fazer constar na Certidão de Dívida Ativa o nome do sócio da empresa, é necessário que a administração pública, que represente o sujeito ativo da obrigação tributária nacional, demonstre, previamente, a conduta ilícita daquele sócio.
Nesse diapasão, podemos citar a brilhante lição de Leandro Paulsen[1]:
Tendo em conta que se cuida de responsabilidade pessoal decorrente da prática de ilícito, impende que seja apurada não apenas a ocorrência do fato gerador, mas também a ocorrência do próprio ilícito que faz com surgir para o terceiro a obrigação de responder pelo débito. Ou seja, o pressuposto de fato da responsabilidade tem de ser devidamente apurado administrativamente, oportunizando-se ao suposto responsável o direito de defesa já na esfera administrativa. (grifo nosso)
Considerando a gravidade de ter-lhe atribuída a responsabilidade pela obrigação tributária alheia, é importante que se tenha a verificação dos pressupostos que a legitimem, por meio de processo administrativo, e, sobretudo, que lhe tenha sido oportunizado o direito à ampla defesa e ao contraditório.
A importância do princípio do contraditório e da ampla defesa no processo administrativo é muito bem explicada por James Marins[2], segundo o qual:
O crédito fiscal do Estado cristalizado no ato de lançamento e notificado ao contribuinte exprime pretensão do ente tributante sobre o patrimônio do cidadão. Pretensão de tal natureza, por submeter-se à cláusula constitucional segundo a qual ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV) somente será válida quando obedecer às garantias materiais e processuais dos contribuintes (substantive due process e procedural due process).
O direito à impugnação administrativa, enquanto concreção do devido processo legal, deve ser apto a impedir que o contribuinte seja “privado de seus bens” sem o devido processo legal (material e processual), o que somente se realiza plenamente quando a solução do litígio atender aos imperativos decorrentes da ampla defesa no contexto do Processo Administrativo Tributário, sobretudo porque a relação tributária apresenta-se como modalidade sui generis no campo obrigacional (a obrigação tributária, por prescindir do consentimento direto do sujeito passivo, reclama a implementação de grande conjunto de garantias para que se aperfeiçoe e gere efeitos patrimoniais).
Nesse sentido que o Superior Tribunal de Justiça firmou o seu entendimento, no julgamento de recurso especial repetitivo, de que não é lícita a inclusão do nome do contribuinte no Cadin, sem que antes tenha sido dada a este a prévia ciência da respectiva inscrição:
TRIBUTÁRIO. INCLUSÃO DO DEVEDOR NO CADIN. NECESSIDADE DE COMUNICAÇÃO PRÉVIA. ART. 2º, § 2º. DA LEI N° 10.522/2002. PRECEDENTES. 1. (…). 2. A comunicação prévia do débito ao devedor é etapa fundamental do procedimento de inscrição no Cadin, na forma do §2º, do art. 2º, da Lei 10.522/2002, e deve ser observada pela administração, sobretudo porque haverá o interstício de 75 dias entre a comunicação e o registro, de forma que nesse prazo o devedor poderá providenciar a regularização da situação que deu causa a inclusão para que se proceda à respectiva baixa, na forma do §5º do referido dispositivo legal. (…) (STJ, 2º T, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 11.11.2014, DJ 18.11.2014).
Com efeito, somente aquilo que resultou do processo administrativo fiscal possui presunção de legitimidade. Segundo Paulsen[3]:
“O ato de lançamento não é um administrativo como o resultante do poder de polícia, que é autoexecutável. O Estado precisa obter o título executivo para alcançar o patrimônio privado. E para que esse título seja válido deve passar por rígido controle de legalidade através de processo administrativo, chancelado finalmente pelo ato de inscrição em dívida ativa, que constitui na última instância do controle de legalidade da persecução tributária.”
Disso deflui, portanto, que a presunção de legitimidade da Certidão de Dívida Ativa só deve ser aplicada quando o débito estiver devidamente constituído por processo administrativo. Se o Estado-Fisco pretende estender a responsabilidade tributária a terceiro, cuja responsabilidade decorre de lei, deverá comprovar no lançamento (CDA) a materialização fática da hipótese normativa.
Extrativismo Fiscal e o Princípio da Comodidade Tributária
O que acontece nestes casos, em que o Fisco autua o sócio como responsável tributário pelos débitos fiscais da empresa, sem que haja a constatação dos requisitos legais que o justifiquem, é uma mera comodidade arrecadatória do sujeito ativo da relação jurídico-tributária, que deixa de empreender esforços para garantir o cumprimento da obrigação.
É o que se convencionou chamar, pela doutrina, de Princípio da Comodidade Tributária. Sob a lógica deste princípio, implícito nos costumes da relação jurídico-tributária, o Fisco não precisa provar para acusar o contribuinte. É o Contribuinte que, acusado sem provas (pela inversão do ônus da prova), tem que provar uma situação jurídica que é da esfera da competência do Fisco dispor: trata-se, assim, de ato impossível para o contribuinte.[4]
Ao incluir o nome do sócio na Certidão de Dívida Ativa, sem demonstrar, por meio de processo administrativo regular, a presença dos requisitos do art. 135, o Fisco transfere àquele o ônus de provar que não agiu com excesso de poderes ou infração a lei.
Ao assim agir, o Fisco, por mero comodismo, deixa de empreender todos os esforços possíveis para apurar a responsabilidade pessoal tributária do sócio, nos termos do artigo 135, e repassa a este o ônus de provar não ser responsável pelo tributo.
Nesse sentido, Eurico Marcos Diniz Santi[5], preferindo chamar o comodismo do Fisco de ‘Extrativismo Fiscal’, nos traz esta brilhante lição:
“Extrativismo fiscal é o regime em que o Estado submete Sociedade e Economia num ciclo vicioso e autista em que a lei é utilizada como instrumento de poder de arrecadação de tributos. Não se paga tributo para exercer direito sobre a prestação de serviços públicos. Paga-se porque a constituição autoriza, a lei prescreve e o Auto de Infração determina: é o império do direito com o obsessivo objetivo de arrecadar”.
É, então, com base neste novo “princípio” da comodidade fiscal, que o Fisco transfere ao sócio da empresa o ônus de provar não ser o responsável pela obrigação tributária, que prevê o artigo 135, do Código Tributário Nacional.
Tal “princípio” não deve, no entanto, sobrepujar o próprio princípio da legalidade, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, II).
Conforme prescreve o artigo 121, parágrafo único, II, do Código Tributário Nacional, para que a figura do responsável tributário possa existir, faz-se necessário que a sua obrigação decorra EXPRESSAMENTE DE LEI.
Não é permitido, pois, ao sujeito ativo da obrigação tributária, por simples comodismo, incluir o nome do sócio da empresa em Certidão de Dívida Ativa por débito tributário da sociedade, sem provar que tenha agido o sócio com excesso de poderes ou infração a lei, contrato social ou estatutos.
Conclusão
Diante de tudo que foi exposto, não restam dúvidas que a inclusão do Sócio na Certidão de Dívida Ativa referente à obrigação tributária contraída pela pessoa jurídica, sem qualquer apuração de ilicitude por parte da pessoa física do sócio, nos termos do artigo 135 do CTN, consiste em conduta ilícita do Estado-Fisco.
Para que o sócio possa ter sua esfera patrimonial atingida em função de débito fiscal contraído pela pessoa jurídica, deverá ser decretada a Desconsideração da Personalidade Jurídica por ordem judicial, a pedido da parte ou do Ministério Público.
Não pode o Estado-Fisco ignorar a norma tributária e responsabilizar o sócio sem que haja previamente a desconsideração da personalidade jurídica em processo judicial, sendo garantido à pessoa física do sócio o princípio do devido processo legal e, sobretudo, o direito ao contraditório.
Caso você seja sócio de uma empresa e seja autuado em razão de dívida contraída pela empresa, poderá impetrar Mandado de Segurança em razão desta ilegalidade. Caso já exista Execução Fiscal ajuizada em seu nome, a medida processual cabível é a Exceção de Pré-Executividade.
Bibliografia
MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro – Administrativo e Judicial. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017;
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e código tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 17. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2015;
SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade – Exercício do Controle Fiscal Rumo à Cidadania Fiscal. 1. ed. São Paulo: Thomsom Reuters Revista dos Tribunais, 2014.
SANTI, Eurico Marcos Diniz de. ICMS – Delegação do ônus da fiscalização nas operações interestaduais e impossibilidade da declaração de inidoneidade retroagir em face de contribuinte de boa-fé: “Princípio da comodidade fiscal” em que problemas de logística da legislação e ineficiência da administração fiscal são transferidos ao contribuinte. FISCOSoft, 2012. Disponível em http://www.fiscosoft.com.br/main_artigos_index.php?PID=274857&printpage=_. Acesso em: 01 dez. 2017.
[1] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e código tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 17. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2015, p. 965.
[2] MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro – Administrativo e Judicial. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 193-194.
[3] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e código tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 17. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2015, p. 976.
[4] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. ICMS – Delegação do ônus da fiscalização nas operações interestaduais e impossibilidade da declaração de inidoneidade retroagir em face de contribuinte de boa-fé: “Princípio da comodidade fiscal” em que problemas de logística da legislação e ineficiência da administração fiscal são transferidos ao contribuinte. FISCOSoft, 2012. Disponível em http://www.fiscosoft.com.br/main_artigos_index.php?PID=274857&printpage=_. Acesso em: 01 dez. 2017.
[5] SANTI, Eurico Marcos. Op. Cit.
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