Desconsideração da personalidade jurídica

Por Fernanda A. Marcilio

 

A desconsideração da personalidade jurídica é ato jurídico decorrente de decisão judicial que visa a atacar os bens dos sócios por obrigações de responsabilidade da sociedade.

Nesse texto, a desconsideração da personalidade jurídica ocorre quando uma sociedade possui limitação de patrimônio dos seus sócios, no entanto, ainda assim, a personalidade jurídica da sociedade é desconsiderada para que o patrimônio dos sócios sirva para quitar as obrigações da sociedade.

Importante mencionar uma diferença de nomenclatura por vezes confundida no dia-a-dia dos operadores do direito: desconsideração é diferente de desconstituição. Enquanto na desconsideração da personalidade jurídica a pessoa jurídica continua existindo, apenas não é considerada para fins de responsabilização, na desconstituição da personalidade jurídica a pessoa jurídica é desconstituída, ou seja, ela é extinta.

Assim, o adequado é falar desconsideração e não desconstituição da personalidade jurídica.

Limitação de responsabilidade dos sócios nas pessoas jurídicas

No direito brasileiro existe o princípio da tipicidade das sociedades. Isso quer dizer que apenas podem existir as sociedades expressamente descritas em lei. Entre os tipos existentes estão: sociedade simples, sociedade comandita simples, sociedade comandita por ações, sociedade em nome coletivo, sociedade limitada, sociedade anônima.

Ocorre que apenas na sociedade limitada e na sociedade anônima todos os sócios possuem responsabilidade limitada aos valores aportados na sociedade para integralização do capital social.

Existe ainda a Empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli) que é uma pessoa jurídica de apenas um sócio (na verdade, titular) que também limita a responsabilidade desta pessoa.

Os outros tipos societários não protegem todos os sócios, sendo até possível limitar a responsabilidade de alguns dos sócios e não limitar de outros dependendo do tipo societário escolhido.

Espécies de desconsideração da personalidade jurídica

Ao analisar a desconsideração da personalidade jurídica, deve-se levar em consideração a existência ou não de culpa, o que faz gerar a existência de duas espécies: subjetiva ou objetiva.

  • Espécie subjetiva: descreve a necessidade de se analisar a culpa dos sócios antes de ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica;
  • Espécie objetiva: basta a ocorrência de um determinado fato para ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica, independentemente de análise de culpa.

Teorias da desconsideração da personalidade jurídica

A doutrina classifica a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica como objetiva, enquanto a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica é tida como subjetiva.

O direito brasileiro utiliza tanto a teoria maior quanto a menor, sendo a regra geral a utilização da teoria maior (subjetiva), e em alguns micro ordenamentos utiliza a teoria menor (objetiva).

Teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica

O direito brasileiro adota a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica para alguns micro ordenamentos, como a Lei de Proteção ao Meio Ambiente (Lei 9.605/98), Lei Antitruste (Lei 12.529/11), o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), dentre outros.

Nessa teoria, é preciso apenas efetuar prova de existência de determinados fatos e não de culpa do sócio na ocorrência dos mesmos.

Teoria menor na Lei de Proteção ao Meio Ambiente

Veja, por exemplo, o que dispõe o art. 4º da Lei 9.605/98:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”

Nesse caso, sempre que ocorrer um dano ao meio ambiente e a sociedade não tiver condições suficientes para gerar seu ressarcimento, poderá ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica para que os bens dos sócios possam servir para quitar as obrigações criadas.

É importante mencionar que não consta na lei a análise da atuação dos sócios (análise de culpa), mas tão somente a existência de um fato (não quitação integral dos prejuízos).

Teoria menor na Lei Antiruste

Nesse mesmo sentido, a Lei 12.529/11 assim dispõe no seu art. 34:

Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.
Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”

Inicialmente, poder-se-ia pensar numa teoria maior, pois seria possível se analisar infração de lei, violação dos atos constitutivos, excesso de poder. Contudo, o parágrafo único incluiu o estado de insolvência como requisito.

Isso quer dizer que, independentemente de culpa, caso a sociedade não arque com as obrigações decorrentes da lei, então seus sócios serão responsáveis.

Teoria menor no Código de Defesa do Consumidor

A mesma situação é descrita na Lei 8.078/90:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

É possível verificar, pelo descrito na primeira frase do art. 28, que apenas poderia ser desconsiderada através de análise de culpa de ato do fornecedor.

No entanto, a segunda frase do caput volta a destacar o estado de insolvência do fornecedor, o que faz com que o parágrafo quinto se torne até mesmo desnecessário, pois sempre que a sociedade não pagar ao consumidor uma obrigação decorrente de uma relação de consumo poderá ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica para atacar os bens dos sócios.

Teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica

A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica é a regra geral para os micro ordenamentos que não possuem disposição específica, e seus regramentos constam no artigo 50 do Código Civil.

Até a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), o art. 50 assim dispunha:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

Verifica-se que apenas era possível a desconsideração da personalidade jurídica quando ocorresse abuso da personalidade jurídica, que era caracterizada pelo desvio da finalidade ou pela confusão patrimonial.

Existia uma divergência em relação ao que seria considerado abuso, o que seria desvio de finalidade e a confusão patrimonial, gerando decisões das mais divergentes sobre a aplicação ou não da desconsideração da personalidade jurídica.

Isso gerava insegurança jurídica, e, por consequência, receio de empreendedores empreender.

Mudanças no Art. 50 do CC após a Lei da Liberdade Econômica

A Lei da Liberdade Econômica, que, inclusive, alterou o Código Civil, trouxe algumas inovações. Veja como ficou o “novo” artigo 50:

Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.”

Percebe-se com clareza que a modificação no artigo 50 do Código Civil foi benéfica ao apresentar conceitos legais do que seria desvio de finalidade (constante no parágrafo primeiro) e o que não seria desvio de finalidade (parágrafo quinto), quando ocorre a confusão patrimonial (parágrafo segundo)

Outras mudanças

Esta não foi a única repercussão da desconsideração da personalidade jurídica constante na MP da Liberdade Econômica convertida em lei.

Verifica-se que foi inserido o parágrafo 7º no art. 980-A, que limitou a interpretação de possibilidade de atingir o patrimônio do titular da Eireli para os casos de fraude. Confira como ficou:

  • 7º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.”

Esta diferenciação decorre da possibilidade de a Sociedade Limitada agora ter apenas um sócio, nos termos dos parágrafos do art. 1.052:

Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.
§ 1º A sociedade limitada pode ser constituída por 1 (uma) ou mais pessoas.
§ 2º Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”

Assim, ocorreu uma diferenciação de maior proteção de quem prefere criar uma Eireli ao invés de uma Sociedade Limitada individual.

Desconsideração da personalidade jurídica no Novo CPC

Esta situação também é razoavelmente nova no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que o novo Código de Processo Civil, de 2015, previu expressamente como seria o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica nos seus artigos 133 a 137.

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica apenas será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, se este atuar intervindo no processo. Este é um ponto importante, porque a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser realizada de ofício pelo Magistrado.

Deverá ser feito um incidente processual. Isso quer dizer que deverá ser criado um novo processo apenas para se analisar se a personalidade jurídica deverá ou não ser desconsiderada no processo principal, independentemente da fase que este se encontra (fase de conhecimento, cumprimento de sentença ou em execução de título extrajudicial). Nesta ocasião o processo principal ficará suspenso até o julgamento final do incidente.

Vale ressaltar que não precisa ser criado um incidente se o pedido de desconsideração da personalidade jurídica for feito juntamente da petição inicial do processo principal.

Na petição inicial, deve constar as razões de fato e de direito que justifiquem a desconsideração da personalidade jurídica. O sócio será citado e terá o prazo de 15 (quinze) dias úteis para se manifestar sobre o incidente, bem como as provas que pretende produzir.

Concluída a fase de debates e de provas, será proferida decisão (interlocutória) decidindo pela desconsideração ou não da personalidade jurídica.

Conclusão

As pessoas jurídicas são extremamente importantes para que as pessoas empreendedoras possam circular riquezas. No entanto, essas pessoas não podem utilizar a máscara jurídica das sociedades para fraudar e gerar prejuízos a terceiros.

Por esta razão, é importante a existência das sociedades com responsabilidade limitada dos sócios, bem como uma forma de punir aquelas pessoas que utilizam de forma indevida as pessoas jurídicas.

 

 

Para mais informações, acesse: http://basda.blog.br.

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