Por Carlos Henrique Vogelsanger
Advogado e membro da OAB/PR desde 2017.
A Lei nº 13.254/2016 foi criada com o intuito de regulamentar o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), o qual possibilita a regularização de recursos, bens ou direitos de origem lícita, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no Brasil, que não foram declarados ou foram, porém de maneira incorreta.
O RERCT tem como propósito incentivar o envio dos ativos de volta ao país, com a regularização de recursos remetidos ao exterior ante o pagamento de imposto de renda (15%) sobre o saldo e multa no mesmo percentual. Além disso, mediante a análise da veracidade das informações prestadas, poderão ser anistiados os crimes de evasão de divisas e sonegação fiscal.
Conforme redação original do artigo 2º, inciso I da Lei da repatriação, o “benefício” se aplica aos valores, bens e direitos, anteriores a 31 de dezembro de 2014, independentemente da natureza, origem ou moeda, de titularidade de pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no Brasil.
Não se observa nas disposições legais do chamado “programa de repatriação”, a necessidade da comprovação a respeito da origem lícita dos ativos regularizados.
O sistema “DERCAT – Perguntas e Respostas” da Receita Federal (SRFB) foi instituído com o intuito de esclarecer dúvidas dos contribuintes no que tange à repatriação dos recursos. Perguntas como “Que tipos de bens e direitos podem ser declarados?”, “Posso declarar bens ou direitos originados de atividade não permitida ou proibidas pela lei?”, “Qual câmbio será utilizado?”, são respondidas com a indicação do respectivo embasamento legal a fim de orientar os contribuintes no momento do preenchimento da declaração de regularização.
Deste modo, analisando as perguntas e respostas disponibilizadas pela Receita Federal, destaca-se a pergunta de nº 40, qual seja: “O declarante precisa comprovar a origem lícita dos recursos?”. A resposta da própria SRFB dispõe expressamente que “o contribuinte deve identificar a origem dos bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat. Não há necessidade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB.”
A leitura da disposição acima esclarece ao contribuinte que é necessário IDENTIFICAR a origem dos bens e DECLARAR a sua origem lícita, não sendo necessária a comprovação da documentação/informação disponibilizada pelo contribuinte. Além disso, a parte final da resposta demonstra que em caso de inconsistência das informações, o ônus da prova é da própria Receita Federal.
Ocorre que, após a adesão de milhares de contribuintes ao programa, a Receita Federal, mediante a aprovação do Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2018, incluiu diversas notas ao sistema “DERCAT – Perguntas e Respostas”, no que tange à comprovação da origem dos recursos.
Estas notas incluídas, alteraram a interpretação da SRFB quanto à necessidade de comprovação da origem dos recursos, reconhecendo que a dispensa da comprovação seria válida somente no momento da transmissão da Dercat.
Além disso, incluiu-se a possibilidade de verificação por parte da Receita Federal quanto à subsunção da hipótese legal de ingresso e permanência no RERCT, através de procedimento de ofício específico.
Por fim, a nota nº 3 da pergunta de nº 40, incluída no sistema Dercat dispõe que a RFB poderá intimar o contribuinte para que, em “prazo razoável”, apresente a comprovação sobre a origem lícita dos recursos regularizados.
Imperioso relembrar que o contribuinte tem a seu favor o princípio constitucional da não autoincriminação, conhecido também como Nemo tenetur se detegere, o qual garante ao indivíduo o direito de não produzir provas contra si, sejam orais ou materiais, incluindo-se também qualquer tipo de coação por parte de autoridades para se auto incriminar.
Já se tem notícia de diversos contribuintes que receberam a notificação da SRFB a fim de comprovar documentalmente a origem dos recursos incluídos no programa de repatriação.
Segundo o site Valor Econômico, a primeira fase do programa de repatriação contou com aproximadamente 25 mil contribuintes pessoas físicas e 100 empresas em 2016, regularizando a quantia de R$ 160 bilhões e a arrecadação do Governo no montante de R$ 46,8 bilhões.
A segunda fase do programa contou com a adesão de 1.965 contribuintes, sendo 1.915 pessoas físicas e 20 pessoas jurídicas, os quais regularizaram o montante de R$ 4,6 bilhões, garantindo à Receita Federal a arrecadação de R$ 1,61 bilhão.[1]
A problemática em torno das novas regulamentações da Receita Federal gira em torno da legalidade e possibilidade de alteração de normas e disposições já consolidadas, nas quais o contribuinte se baseou para tomar a decisão de aderir ou não ao programa de repatriação.
Neste sentido, importante frisar o que dispõe os artigos 23 e 24 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), conforme Decreto Lei nº 4.657/1942:
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)[2].
A nova interpretação do Fisco, revendo o seu próprio entendimento quanto ao sistema Dercat, já consolidado, e incluindo novas disposições, enseja novas obrigações ao contribuinte, que não tinha ciência das possíveis alterações e foi pego de surpresa com as novas interpretações.
A adesão ao programa de repatriação dos recursos, realizada em 2016 e 2017 pelos contribuintes trazia disposições favoráveis aos contribuintes e o programa em si foi visto pela sociedade como uma oportunidade aos interessados de trazer recursos remetidos ao exterior, gerando assim uma arrecadação ao Estado.
Ademais, o ônus da prova quanto às informações prestadas por parte dos contribuintes, cabe tão somente à RFB, não podendo esta, de maneira alguma, intimar o contribuinte para que este apresente provas contra si mesmo, desrespeitando às normas à época da adesão e o princípio da não autoincriminação.
Para mais informações, acesse: http://basda.blog.br/
[1] Disponível em http://cardillo.com.br/receita-federal-comeca-a-fiscalizar-contribuintes-que-aderiram-ao-programa-de-repatriacao-de-ativos-rerct/, acessado em 28 de janeiro de 2019.
[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm. Acessado em 28 de janeiro de 2019.