Responsabilidade do Banco nos Golpes Envolvendo Caixas Pessoais

Karel Assef Sadila

OAB/PR 97.638

 

Uma cena comum no cotidiano brasileiro: vítima idosa, quase sempre hipossuficiente (sem muitos recursos financeiros), é abordada por estelionatários que conseguem convencê-la a trocar suas economias arduamente armazenadas por uma recompensa forjada. Se tratando de pessoas humildes hipervulneráveis, acabam por acreditar inocentemente na veracidade da situação, perdendo milhares de reais absolutamente necessários para a sua sobrevivência e de seus familiares, causando enorme sofrimento e incertezas em seu futuro.

Para a consumação do estelionato muitas vezes é necessário que sejam realizados grandes saques de dinheiro nos caixas de atendimento pessoal nas agências da instituição bancária em que a vítima possui uma conta. Apesar de serem retirados valores atípicos quando comparados com o histórico do correntista e estando presentes circunstâncias especiais que indicam a vulnerabilidade (idade avançada, hipossuficiência), nada é feito para a sua proteção, situação que possibilita a ação criminosa e causa inúmeros prejuízos à vítima.

As instituições bancárias se encontram em posição fundamental diante desse cenário que atinge milhares de brasileiros todos os anos, sendo agentes capazes de realizar mudanças positivas, com gastos mínimos e medidas protecionistas simples. Mesmo assim, vários bancos não possuem nenhuma espécie de mecanismo institucionalizado de prevenção, identificação e proteção contra golpes, o que acaba incentivando condutas negligentes de seus funcionários. Depende-se da vontade individual do funcionário em brevemente inquirir o correntista para descobrir se tratar de vítima de golpe, bloqueando o saque que estava sendo realizado. Somado a isso, mesmo após a identificação do golpe em andamento, muitas vezes não são tomadas nenhumas medidas paliativas (como, por exemplo, o acionamento da polícia para a detenção dos criminosos) para tentar minimizar o prejuízo e auxiliar a vítima. Minando, assim, as chances de recuperar as suas economias.

Normalmente os bancos negam qualquer indenização sob a alegação de que praticaram nenhum ato ilícito e que a situação se enquadraria na hipótese de culpa exclusiva da vítima (situação corroborada pela atual jurisprudência). Todavia, nos próximos tópicos, pretende-se demonstrar o equívoco desse entendimento, argumentando que as instituições bancárias que agem assim não respeitam determinação legal de proteção ao consumidor e ao idoso, além de causar dano por ato ilícito omissivo impróprio, devendo sim indenizar os correntistas vítimas, bem como instituir precauções para evitar que fatos semelhantes ocorram com outros consumidores vulneráveis.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC), mais especificamente em seu artigo 4º, define a Política Nacional das Relações de Consumo. Neste artigo, a lei consumerista estabelece as diretrizes nacionais e princípios que regem as relações de consumo. Em seu caput, enfatiza o atendimento das necessidades dos consumidores, respeitando a sua segurança e protegendo os seus interesses econômicos:

Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

Dentre os seus princípios estão: o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (inciso I); a necessidade de ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor pela garantia de serviços com padrões adequados de qualidade, segurança e desempenho (inciso II, alínea “d”); a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico (inciso III); a educação e informação de consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo (inciso IV); e o princípio mais relevante neste caso:

V – incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

Não bastasse isso, também o CDC, por força de seu art. 6º, inciso VI, prevê a necessidade de implementação de mecanismos preventivos, determinação ignorada por vários bancos, bem como a consequente reparação dos danos patrimoniais e morais causados, sejam eles individuais, coletivos ou difusos:

Art. 6. São direitos básicos do consumidor:

VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais individuais, coletivos e difusos.

Ou seja, observando o conjunto da lei consumerista citada, há verdadeira obrigação legal de que as instituições bancárias (por serem fornecedoras) criem meios eficientes de proteção e garantia da segurança e dos interesses econômicos dos correntistas (por serem consumidores), determinação não cumprida por alguns bancos, que se omitem na implementação desses meios, causando enorme prejuízo a todo um grupo de consumidores extremamente vulneráveis.

Nos casos que envolvem correntistas maiores de sessenta anos também é aplicável o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). Esse aspecto é altamente relevante porque a grande maioria das vítimas nessa espécie de golpe são justamente pessoas idosas, conforme se observa cotidianamente nas manchetes de veículos de notícias.

É de extrema importância para esse tema o art. 4º do Estatuto do Idoso, pois ele esclarece e define de forma clara que qualquer tipo de omissão negligente é passível de punição na forma da lei e que é dever de todos prevenir ameaça ou violação aos direitos do idoso, nesse grupo estando incluídos os idosos que diariamente são vítimas de golpes de estelionato. Vale a leitura na íntegra desse artigo citado:

Art. 4º Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.

  • 1º É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso.
  • 2º As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção outras decorrentes dos princípios por ela adotados.

Como consequência da inobservância das normas de prevenção citados logo acima, a legislação é certeira e não abre margem para quaisquer dúvidas:

Art. 5º A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa física ou jurídica nos termos da lei.

Diante dessas determinações legais é impossível pensar que as instituições bancárias estão isentas de criar mecanismos de prevenção contra golpes, quando envolvem vítimas maiores de sessenta anos, detentores de expressa proteção especial. Também não se pode negar que a ausência desses mecanismos importam em consequente responsabilidade civil da pessoa jurídica, sendo injustificável o argumento de culpa exclusiva da vítima.

Não bastasse isso, no tópico seguinte iremos demonstrar como a ausência de políticas institucionalizadas de prevenção, na omissão de determinados bancos, possui uma relação direta com a produção do resultado, havendo o dever jurídico de impedi-lo, em razão da posição de garante legal, contratual e fática, incorrendo em ato ilícito.

Defende-se aqui que a conduta das instituições financeiras, ao desrespeitar a legislação consumerista e de proteção ao idoso, efetivamente causa danos aos correntistas vítimas, incorrendo em ato ilícito não em sua modalidade comissiva, mas de uma forma omissiva imprópria, se encontrando em verdadeira posição de garante legal, contratual e fática.

Para tanto, é necessário fazer a importação de conceitos utilizados pela dogmática penal, criados e refinados para trazer maior estabilidade jurídica na identificação e responsabilização de condutas ilícitas, tanto no âmbito da ação quanto da omissão. Tal importação se mostra plenamente possível e em hipótese nenhuma pode ser considerada como ilegal ou irrealizável, como se fosse uma analogia proibida pelo direito civil. Muito pelo contrário, a responsabilização cível por conceitos penais ocorre cotidianamente, seja: pelos reflexos cíveis e pela força executiva de sentença penal condenatória transitada em julgado (art. 515, VI, do CPC e art. 63 e seguintes do CPP); pela proibição de questionamento cível sobre existência do fato ou de autoria já decididas no juízo criminal (art. 935 do CC); pela criação de coisa julgada cível em reconhecimento de antijuridicidade em sentença penal (art. 65 do CPP); e a partir de decisões do STJ, quando lida, por exemplo, com a necessidade de reparação de danos cíveis para concessão do benefício da suspensão condicional do processo:

 

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. CUMPRIMENTO PELO PACIENTE DE TODAS AS CONDIÇÕES IMPOSTAS PELO JUÍZO DE 1º GRAU. REPARAÇÃO DOS DANOS À VÍTIMA. OMISSÃO. DANO A SER FIXADO NA ESFERA CÍVEL. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. O art. 89 da Lei n. 9.099/1995, dispõe que a suspensão condicional do processo será revogada, obrigatoriamente, quando o beneficiário for processado por outro crime, no decorrer do período de prova, ou na ausência de reparação do dano sem motivo justificado. A doutrina considera, inclusive, que a reparação do dano é uma das condições mais importantes, sendo obrigatória, uma vez que a reparação dos danos sofridos pela vítima é objetivo que deve ser buscado sempre que possível. 3. No caso dos autos, entretanto, a suspensão condicional do processo foi deferida ao paciente, excluindo-se, entre as condições, a reparação dos danos à vítima. Assim, se omissão existiu, pois não fora incluída a reparação dos danos como condição do benefício, não se pode imputar a mácula ao paciente. Por outro lado, a suposta vítima poderá, no juízo cível discutir a reparação do dano. 4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para determinar a extinção da punibilidade do paciente, uma vez que cumpridas todas as condições impostas no sursis processual, sem prejuízo de que a vítima possa, no juízo cível, buscar a reparação dos danos.

(STJ – HC 421280 PA 2017/0272275-2 – Julgamento 04/10/2018 – Publicação 15/10/2018 – Quinta Turma – Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca).

Não poderia ser mais claro, a legislação e a jurisprudência já permitem a responsabilização cível utilizando categorias jurídico-penais. Desta forma, como postulamos que a omissão injusta do banco na posição de garante não evita a produção do resultado, deve-se verificar se estão presentes todos os requisitos objetivos da omissão imprópria, e diante de uma resposta positiva, o banco realiza ato ilícito e deve reparar o dano causado. O raciocínio é simples: porque um salva-vidas privado, que poderia perceber facilmente se alguém está se afogando, e não a salva, pode ser responsabilizado penal e civilmente (cometendo ato ilícito) enquanto o banco, que poderia perceber facilmente se alguém está sofrendo um golpe, e não o ajuda, não pode ser responsabilizado civilmente (não cometendo ato ilícito)?

Segundo a doutrina penal especializada, existem três requisitos comuns às espécies de omissão, sendo eles: (1) situação de perigo para o bem jurídico; (2) poder concreto de agir; e (3) omissão de uma ação mandada. Também há mais dois requisitos específicos à omissão imprópria, sendo: (4) a ocorrência do resultado e (5) posição de garante. Na sequência, esses requisitos serão analisados detalhadamente.

Situação de perigo para o bem jurídico – é a realidade determinante do dever de agir, configurada normalmente em uma situação típica. Na omissão imprópria o perigo está implícito nos delitos de resultado. A situação de perigo para o bem jurídico é deduzida do tipo legal do estelionato (art. 171, CP), havendo efetivo perigo à propriedade dos correntistas caso sejam vítimas, tanto que o resultado danoso ocorre;

Poder concreto de agir – é a capacidade concreta de realizar a ação mandada. Seriam excluídas, portanto, situações em que era impossível objetivamente que os agentes agissem. Deve ser analisado no caso concreto. Se presentes circunstâncias especiais individuais, é plenamente possível que qualquer funcionário do caixa identifique a situação de perigo e evite, ou reduza o dano. Ainda mais se pelo menos um dos funcionários perceba as nítidas peculiaridades do caso, bloqueando o saque, mas sendo ineficaz na evitação do resultado;

Omissão de uma ação mandada – Diante de uma situação de perigo e havendo o poder concreto de agir, o agente possui o dever jurídico de agir, sintetizado neste requisito. Deve-se analisar se a instituição bancária em questão possui mecanismos, protocolos ou procedimentos que visam prevenir, identificar e conter golpes. Se os funcionários, incentivados por falta de política do banco, não agem diante da situação de perigo, mesmo havendo a possibilidade concreta de atuação, configura a omissão institucional de uma ação mandada;

Ocorrência do resultado – Para as omissões impróprias, além dos requisitos acima descritos, é necessária a ocorrência do resultado típico, e de fato, se o delito se consuma e o resultado se realiza, os correntistas sofrem um dano enorme, que poderia ter sido evitado por políticas protecionistas do banco e pela atuação eficiente dos funcionários;

Posição de garante – O ordenamento jurídico brasileiro adota o critério formal de identificação da posição de garante, com suas hipóteses estando descritas no art. 13, §2º, do CP. Dentre as opções se encontram: (a) obrigação legal de cuidado, proteção ou vigilância; (b) assunção da responsabilidade de impedir o resultado; e (c) comportamento anterior criador do risco do resultado. Nestes casos, ocorrerem as hipóteses das alíneas “a” e “b”, isto porque a posição de garante foi assumida pela determinação legal consumerista de proteção do consumidor, através do contrato realizado pelas partes e pela assunção fática da proteção, vez que a figura do banco, sendo a instituição responsável pelo repasse de dinheiro ao correntista, cria relações de dependência e encoraja a exposição a riscos que, de outro modo, seriam evitados, tornando inegável a posição de garante da instituição financeira perante a situação de perigo ao bem jurídico.

Diante das conclusões expostas acima, mister se faz o reconhecimento da ocorrência de ato ilícito por parte das instituições financeiras, que mesmo em situação de perigo ao bem jurídico, sendo possível agir concretamente, deixam de cumprir uma ação mandada, permitindo a realização dos danos provocados por terceiros, mas que tinha o dever de evitar diante da posição de garante que assumiu perante as circunstâncias formais e fáticas, estando em discordância com a Política Nacional das Relações de Consumo e de proteção ao idoso.

Não é um exercício complexo, diante da grave situação em que nos encontramos, com pessoas hipervulneráveis e hipossuficientes perdendo de forma irreversível suas economias pela atitude omissiva das instituições bancárias, pensar em formas protecionistas simples e econômicas que evitariam danos enormes. Muitas vezes a vítima é pessoa simples que não possui movimentações financeiras grandes. O saque repentino e abrupto de valores atípicos e incompatíveis com o histórico do correntista, deveria acionar uma bandeira vermelha, que aliada a simples constatação de características individuais especiais como, por exemplo, idade avançada e condição de hipossuficiência, deveriam ao menos ensejar o questionamento por parte do funcionário do banco se haveria alguma razão especial para a retirada de tal quantia. O correntista não é obrigado a aceitar em responder a inquisição, mas em tal hipótese seria suficiente a entrega de uma cartilha com os golpes mais comuns e recomendação de atenção. Caso o correntista aceite conversar e o golpe for identificado, os funcionários do banco devem tomar a atitude correta de acionar a autoridade policial para tentativa de detenção e responsabilização dos estelionatários, podendo recuperar valores eventualmente entregues. Essa breve reflexão foi capaz de criar hipóteses simples, sem grande custo, rápidas e que poderiam evitar danos gigantescos que acontecem diariamente à correntistas vulneráveis, todavia, tais circunstâncias são inexistentes em muitos bancos e costumam não ocorrer, diante da omissão institucionalizada imprópria.

Assim, demonstrou-se nesse artigo que a omissão das instituições financeiras em instituir meios eficientes de proteção da segurança e interesses econômicos de seus correntistas vulneráveis em situações de golpe, é violadora da legislação consumerista, como uma afronta direta à Política Nacional das Relações de Consumo, e da legislação de proteção ao idoso, a depender do caso. Além disso, por existir a situação de perigo ao patrimônio do correntista, haver circunstâncias pessoais que possibilitam os funcionários do banco agir concretamente, haver o dever de agir, por estar configurada a posição de garante (legal, contratual e fática) e, por fim, caso haja a produção do resultado, os bancos preenchem todos os requisitos objetivos da omissão imprópria, incorrendo em ato ilícito.

A consequência direta desse raciocínio é a possibilidade de indenização pelos danos materiais que o correntista em questão sofreu, não excluindo a possibilidade de indenização por danos morais, caso o sofrimento pela perda do sustento de vida cause um impacto muito grande na vida da vítima. Ressaltamos, também, o aspecto punitivo do dano moral. Por fim, as instituições bancárias podem ser obrigadas a interromper o estado de coisas ilícito e iniciar a implementação de mecanismos efetivos de proteção, auxiliando cidadãos hipervulneráveis nesse momento tão delicado e que prejudica muitos, todos os anos, no nosso país.

Política criminal não se faz somente com uma repressão desproporcional, atrasada e que muitas vezes não ocorre, diante da conhecida ineficiência da polícia investigativa. Se faz, sobretudo, com políticas preventivas envolvendo o máximo de setores do Estado e da sociedade civil, na busca de tentar impedir que o dano social ocorra ou se agrave, evitando condutas que prejudicam pessoas altamente fragilizadas. Somente assim poderemos chegar o mais próximo possível de uma justiça social para segmentos vulneráveis.

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