Por Paulo Henrique Berehulka
Aos tributaristas, contadores e gestores financeiros de empresas, o tema da “transferência de créditos” federais é mais um daqueles que atingiu raias místicas. A velha máxima de que “uma mentira repetida diversas vezes toma força de verdade” aplica-se ao caso em análise.
A Receita Federal impõe aos analistas a visão de que não há possiblidade jurídica de se transferir créditos tributários (sic) federais entre contribuintes. Mas o exegeta do direito não pode conformar-se com as conclusões alheias sem que tenha atingido o mesmo ponto hermenêutico por suas próprias faculdades intelectuais, motivo pelo qual justifica-se este artigo.
A grande escora utilizada pela autarquia é a norma insculpida no § 12º, inciso II, alínea “a”, do art. 74 da Lei 9430/96. Vejamos:
12. Será considerada não declarada a compensação nas hipóteses:
(omissis)
II – em que o crédito:
a) seja de terceiros;
(omissis)
Questiona-se se existe, de fato, vedação na legislação para a cessão de saldos credores (restituíveis ou ressarcíveis) de tributos federais entre contribuintes.
Primo ictu oculi, o texto legal em cotejo não traz qualquer menção aos termos “cessão” e/ou “transferência” relativos aos saldos credores tributários, pois apenas cria condições normativas para o “conhecimento” das Declarações de Compensação ofertadas pelos contribuintes dentro dos sistemas eletrônicos da SRFB.
Na realidade, o que a lei comanda é que não será considerada, como ato jurídico válido e existente, a declaração de compensação que apresente um crédito cuja titularidade seja de outrem daquele a quem a legislação determine a responsabilidade pela liquidação do tributo.
Trocando em raciocínio simplório, a lei proíbe que o contribuinte “A” (titular do saldo de crédito), use seu direito de restituição/ressarcimento para compensar débito tributário do contribuinte “B”. Vale também a análise invertida, onde denota-se a proibição de que o contribuinte “B” apresente Declaração de Compensação com crédito que não seja de sua titularidade, por exemplo, de titularidade do contribuinte “A”.
A análise científica ensina que relação tributária é aquela onde o objeto obrigacional é o pagamento do tributo. Nesta seara, os sujeitos da obrigação estão plenamente definidos na legislação, sendo evidente que sempre estará no polo ativo da relação um ente tributante de direito público.
Ocorre que, em determinadas circunstâncias, o contribuinte vê-se sujeito ativo de uma relação obrigacional creditícia frente ao ente tributante. Tal fato ocorre, por exemplo, (a) em razão de pagamentos de tributos indevidos às Fazendas; ou ainda, (b) na soma contumaz de saldos credores oriundos de benefícios fiscais desonerativos das operações de saída, mormente em sistemas não-cumulativos. Em ambos os casos (restituição para o item “a”; ressarcimento para o item “b”), a legislação prevê o direito do contribuinte, agora credor do ente tributante, buscar a satisfação pecuniária de sua posição de crédito.
Nestas situações acima, embora que o crédito tenha, por natureza, vínculos com a legislação fiscal, não se está diante de uma obrigação tributária. Se esta não fosse a conclusão, chegaríamos à absurda hipótese onde teríamos que admitir que, quando o fisco paga um processo de restituição e/ou ressarcimento, estaria realizando pagamento de tributo ao contribuinte, o que não é juridicamente factível.
Desta forma, quando o contribuinte está credor do fisco, tem-se uma relação obrigacional comum (não tributária), porém, adstrita ao regime de direito público administrativista; a final, é a Administração Pública quem está no polo passivo obrigacional.
Dentro do Direito das Obrigações, a transmissibilidade das relações é uma regra. Permite-se, em geral, o deslocamento subjetivo do polo ativo (cessão de direitos, art. 286 do CC) e passivo (assunção de dívida, art. 299 do CC) das obrigações. Ocorre que, no caso do direito público, estas normas privadas devem ser harmonizadas com a legislação de regência, mormente com a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional.
O art. 123 do CTN é uma norma-chave nesta análise. Este comando preconiza que os contratos particulares não geram efeitos jurídicos, com relação aos entes tributantes, no que diz respeito à alteração do sujeito passivo das obrigações tributárias[1]. Façamos a leitura:
Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.
Neste sentido, resta claro que não importa o que dizem os instrumentos privados sobre quem deve pagar determinado tributo, a lei supera esta vontade particular e determina, sem arrego, o efetivo responsável pelo recolhimento.
No entanto, em se tratando de transferência do polo ativo da relação obrigacional comum, onde o contribuinte é o credor do fisco (por restituição ou ressarcimento, por exemplo), a Fazenda Pública tem se valido do art. 123 do CTN para tentar ilidir os efeitos da cessão de crédito entre os particulares.
A jurisprudência pátria[2], após sucessivos julgamentos, exarou definição quanto à inaplicabilidade do art. 123 do CTN às cessões de direito entre contribuintes, cujo objeto seja uma posição de dívida da Fazenda Pública. Da extensa ementa do julgamento que resolveu o tema 368/STJ, extrai-se o seguinte excerto:
“6. A regra contida no art. 123 do CTN, que dispõe sobre a inoponibilidade das convenções particulares à Fazenda Pública, em matéria tributária, destina-se a evitar acordo entre particulares, que poderiam alterar a responsabilidade tributária para com a Fazenda. Seus destinatários são os sujeitos passivos das obrigações tributárias, o que não é o caso dos autos.”
Corroborando com o julgado, aportamos o caput do art. 37 da CF/88, cujo objetivo é assentar os princípios basilares a serem seguidos pela Administração Pública na sua relação com os administrados. Dentre os princípios eleitos pelo constituinte, consta o da impessoalidade.
É defeso à Administração Pública criar distinções subjetivas não previstas constitucionalmente no trato das relações com os administrados. Segundo a doutrina[3] especializada, a impessoalidade “traduz a ideia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da legalidade ou isonomia, ou seja, impede que fatores e/ou promoções pessoais estejam presentes no exercício da função administrativa.”.
No sentido da orientação acima, nota-se que a forçosa interpretação fazendária do art. 123 do CTN, em conjunto com o art. 74 da Lei n. 9.430/96, cria uma posição de discriminação antijurídica entre o credor originário (cedente) e o cessionário de um direito creditório fiscal. Para a Fazenda Pública deveria ser indiferente (impessoal) tratar sobre a sua obrigação de pagar (determinada restituição e/ou ressarcimento) com um contribuinte ou outro, desde que, por óbvio, apresente-se o recebedor munido dos instrumentos jurídicos que o legitimam a dar a devida quitação à obrigação.
Pelo exposto, permitimo-nos discordar da hermenêutica fazendária para afirmar, s.m.j., a inexistência dentro do ordenamento jurídico brasileiro de norma que vede a transferência de crédito tributário federal (saldos restituíveis ou ressarcíveis) entre particulares. Uma vez cumpridas as exigências legais de notificação ao devedor (Fazenda Pública), bem como o respeito à forma pública (ou registrada) do instrumento cessão, os efeitos salutares do ato jurídico estarão plenos, sendo transmitida a titularidade do polo ativo da relação de crédito do cedente para o cessionário.
[1] Aqui sim a referência à obrigação tributária é feita dentro do conceito normativo clássico do direito tributário, onde inarredavelmente o sujeito ativo é a Fazenda Pública, o sujeito passivo é o contribuinte e o objeto é o pagamento de um tributo.
[2] REsp 1119558 / SC – RECURSO ESPECIAL 2009/0014665-4 – Ministro LUIZ FUX (1122) – Relator para Acórdão Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128) – S1 – PRIMEIRA SEÇÃO – j. 09/05/2012 – p. DJe 01/08/2012.
[3] Mello, Celso Antônio Bandeira d. CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO. São Paulo: Malheiro, 2012, pág. 117.
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