Por Maxwell Lima Dias, Advogado do escritório Berehulka & Agostini Sociedade de Advogados (BASDA), especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Paraná – PUCPR, e membro da OAB/PR desde 2016.
Introdução
Em 22 de agosto de 2019, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 399.109/SC, definiu que o sujeito passivo da obrigação que deixe de recolher aos cofres públicos o ICMS declarado, e cobrado ou descontado de terceiros, incorre nas penas do crime de apropriação indébita tributária, tipificado no art. 2, II, da Lei nº 8.137 de 27 de Dezembro de 1990, que dispõe sobre os crimes contra a ordem tributária.
Segundo o Tribunal, somente incorrerá no crime de apropriação indébita tributária, aquele que, na condição de sujeito passivo da obrigação tributária, cobra ou desconta o valor do tributo de terceiros, independentemente de ser contribuinte ou substituto tributário.
Assim, de acordo com o entendimento acima exarado pelo STJ, configura-se o crime tipificado no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, o mero inadimplemento do ICMS pela empresa, ainda que decorrente de operações próprias, quando cobrado ou descontado de terceiros, e aqui se inclui a hipótese de inclusão do imposto no preço do produto.
Data vênia o entendimento exarado pela maioria dos ministros desembargadores da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, o caso da empresa contribuinte que declara o ICMS decorrente de operação própria, e deixa de recolher no prazo legal, não é de crime de apropriação indébita, mas tão somente de mero inadimplemento tributário, conforme o entendimento outrora sumulado do próprio STJ:
Súmula 430/STJ: O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente.
De acordo com a súmula acima referida, caso o sócio/administrador da empresa contribuinte não tenha agido em contrariedade à lei, ou com abuso às normas internas do contrato social ou estatuto social da empresa, não pode ser responsabilizado pelo não recolhimento do imposto devido, por se tratar de mero inadimplemento tributário.
Primeiramente, faz-se necessário entendermos a diferença entre o fato típico da apropriação indébita tributária e a mera inadimplência de tributos. No primeiro caso, o autor deixa de recolher aos cofres públicos tributo cobrado ou descontado de terceiro, hipótese em que somente ocorre nos casos de substituição tributária, quando o responsável tributário retém na fonte ou exige do contribuinte o valor referente ao tributo pago. Já na inadimplência, o autor, contribuinte direto do tributo, deixa de recolher o tributo devido em razão de insuficiência de fundos para arcar com o ônus financeiro.
Assim, tendo em vista a diferença entre apropriação indébita e inadimplência tributária, não há de se falar em tipicidade da conduta do contribuinte, que declara ao Fisco o ICMS devido decorrente de operação própria e deixa de recolhê-lo, ao disposto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90.
Ademais, a atipicidade da conduta acima referida pode ser comprovada sob um outro enfoque: o da Teoria da Imputação Objetiva, na medida em que o contribuinte em nenhum momento cria um risco não permitido.
Da atipicidade da inadimplência tributária sob o enfoque da Teoria da Imputação Objetiva
É cediço que, desde a edição da Lei n° 7209/84, responsável pela reforma na Parte Geral do Código Penal, a doutrina majoritária passou a preconizar que o nosso Ordenamento Jurídico Brasileiro está regido pela Teoria do Finalismo, em que a conduta humana praticada em contrariedade ao ordenamento jurídico já não é mais o único pressuposto da tipicidade, tendo sido incorporado ao Tipo Penal os elementos subjetivos do “dolo” e da “culpa”, sem os quais não haveria o injusto penal, e, consequentemente não incidiria a norma penal.
Com a inserção dos referidos elementos subjetivos no Tipo Penal, resolvera-se o grosseiro problema criado pela Teoria da Causalidade, qual seja a regressividade causal ad infinitum[1].
Em razão da adoção do finalismo por nosso ordenamento jurídico, diversos juristas entendem, então, que a aplicação da Teoria da Imputação Objetiva seria inviável. Partem tais juristas, no entanto, da falsa premissa de que a Teoria Finalista da Ação e a Teoria da Imputação Objetiva são incompatíveis entre si.
Primeiramente, cumpre salientar que o intérprete não está adstrito ao comprometimento do Legislador com esta ou aquela doutrina, não havendo, portanto, óbice para aplicação da teoria da imputação objetiva no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São as técnicas interpretativas da realidade que conduzem a atividade legiferante (e judicante) e não o contrário, sob pena de se estagnar o desenvolvimento social e jurídico.
A Teoria da Imputação Objetiva, desenvolvida por Claus Roxin, em 1970, com base no funcionalismo[2], tenta dar uma solução mais adequada e eficiente, partindo de critérios axiológico-valorativos mais próprios à essência valorativa do Direito[3]. “Surge com a finalidade de limitar o alcance da chamada teoria da equivalência dos antecedentes causais, sem, contudo, abrir mão desta última”[4].
Para os adeptos a esta teoria, ao Tipo Penal deveria ser acrescido um novo elemento normativo, dentro do próprio Tipo Objetivo. O exame do Tipo Penal passaria a gozar, então, de um novo juízo valorativo, já no Tipo Objetivo, antes do exame do dolo e da culpa no Tipo Subjetivo.
Cumpre ressaltar que a Teoria da Imputação Objetiva não extingue o nexo causal, mas simplesmente complementa-o. A atribuição de um resultado a alguém, agora, além de necessitar de causalidade, vai ser determinada pela imputação objetiva.
A imputação objetiva possui, pois, a natureza jurídica de elemento normativo supralegal[5], e é essencialmente valorativa, pois ultrapassa o juízo de cognição, devendo ser valorado pelo juiz de acordo com as circunstâncias do caso concreto, para se chegar à conclusão de que se deve atribuir ou não aquele resultado[6].
O juízo de valoração da imputação objetiva deverá ser realizado pelo magistrado em dois níveis, segundo critérios distintos: (a) criação de risco proibido para o bem jurídico pela ação do autor; e (b) a realização do risco proibido criado pelo autor no resultado de lesão do bem jurídico – especialmente relevante em relação aos desvios causais.
De acordo com a primeira hipótese, exclui-se a imputação do resultado àquele que não criou risco para a ocorrência do resultado, ou reduz o risco preexistente do resultado, a exemplo da mulher que deseja a morte de seu marido, e o convence a passear na praia deserta durante a tempestade, na esperança de que um raio o fulmine: a casual ocorrência do resultado não é definível como risco criado pelo autor, pois acontecimentos casuais estão fora de controle humano.
Já na segunda hipótese, o resultado não pode ser imputado ao autor que tenha causado o risco, se este risco criado não se realiza no resultado, ainda que existente o nexo de causalidade. Se A fere B com dolo de homicídio, mas B morre de incêndio no hospital, após cirurgia bem sucedida, não poderá ser A imputado pelo resultado “morte” de B. Neste caso, subsiste a responsabilidade penal por tentativa do resultado.
Impende salientar, ainda, que o resultado somente poderá ser imputado ao autor, quando o risco criado por este seja proibido por lei. Isto é, exige-se que o risco criado pelo autor não seja permitido pelo Estado.
Conforme a melhor doutrina, entende-se por risco permitido aquele inerente à vida em sociedade. Com a evolução das ciências e a mutabilidade das relações sociais, novas atividades surgem e demandam maiores deveres de cuidado e, em contrapartida, riscos para os bens jurídicos alheios. Assim, pondera Damásio E. de Jesus[7]:
“Quando o ordenamento jurídico permite e regula a construção de uma ponte ou a fabricação de um automóvel, um avião, um navio, uma arma de fogo etc., o legislador tem consciência de que a utilização desses bens, ainda que de forma normal, carrega riscos a interesses que ele mesmo pretende proteger.”
Logo, quem pratica uma atividade de risco, tolerada pelo Estado e pela sociedade, não pode ser responsabilizado se agiu dentro desse grau de tolerância. Vige o princípio da confiança, pelo qual “pode-se confiar em que os outros se comportarão conforme o direito, enquanto não existirem pontos de apoio concretos em sentido contrário, os quais não seriam de afirmar-se diante de uma aparência suspeita”[8].
Nesse sentido, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o qual, em julgamento de homicídio culposo, nos autos do HC nº 46.525/MT, aplicando a Teoria da Imputação Objetiva, decidiu pela atipicidade da conduta dos acusados, em virtude de não terem estes criado um risco não permitido:
“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO. MORTE POR AFOGAMENTO NA PISCINA. COMISSÃO DE FORMATURA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ACUSAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE PREVISIBILIDADE, DE NEXO DE CAUSALIDADE E DA CRIAÇÃO DE UM RISCO NÃO PERMITIDO. PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA. (…) 4. Ainda que se admita a existência de relação de causalidade entre a conduta dos acusados e a morte da vítima, à luz da teoria da imputação objetiva, necessária é a demonstração da criação pelos agentes de uma situação de risco não permitido, não-ocorrente, na hipótese, porquanto é inviável exigir de uma Comissão de Formatura um rigor na fiscalização das substâncias ingeridas por todos os participantes de uma festa. 5. Associada à teoria da imputação objetiva, sustenta a doutrina que vigora o princípio da confiança, as pessoas se comportarão em conformidade com o direito, o que não ocorreu in casu, pois a vítima veio a afogar-se, segundo a denúncia, em virtude de ter ingerido substâncias psicotrópicas, comportando-se, portanto, de forma contrária aos padrões esperados, afastando, assim, a responsabilidade dos pacientes, diante da inexistência de previsibilidade do resultado, acarretando a atipicidade da conduta. 6. Ordem concedida para trancar a ação penal, por atipicidade da conduta, em razão da ausência de previsibilidade, de nexo de causalidade e de criação de um risco não permitido, em relação a todos os denunciados, por força do disposto no art. 580 do Código de Processo Penal. (STJ – Quinta Turma. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. Data do julgamento: 21.03.2006. Publicado no DJ em 10.04.2006)”. (Grifo nosso).
Vê-se, pois, que o próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela aplicabilidade da Teoria da Imputação Objetiva ao nosso ordenamento jurídico penal, sobretudo para consertar as falhas e absurdos criados pela teoria da causalidade.
Aplicando-se a Teoria da Imputação Objetiva ao caso do contribuinte que, sem valer-se de qualquer ato ilícito ou fraudulento, declara ao Fisco o quantum devido a título de ICMS próprio, e deixa de recolhê-lo no prazo legal, temos que o crime de apropriação indébita tributária, previsto no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90, não poderá ser a este imputado, uma vez que o contribuinte, no desenvolvimento de suas atividades empresariais lícitas, não criou qualquer risco proibido em nosso ordenamento jurídico.
Conclusão
Dessa forma, a insolvência de uma empresa, em que a inadimplência de tributos é mero reflexo da sua indisponibilidade financeira, deve ser interpretada como um risco permitido. Entendimento contrário a este transformaria o empresário em um criminoso iminente, cujo crime seria a inadimplência, seja perante o Fisco ou perante particulares, e inviabilizaria o próprio desenvolvimento de atividade comercial em nosso país.
[1] O Regresso ao Infinito, consequência nefasta da Teoria Causalista da Ação, fundamentada pela Equivalência dos Antecedentes, pode ser explicado pelo famoso exemplo da doutrina clássica, de que seria típica de homicídio a conduta do fabricante de arma de fogo, que posteriormente foi utilizada pelo comprador para o cometimento do crime, uma vez que, se suprimida a conduta, não haveria o resultado.
[2] A teoria do funcionalismo, dominante desde a década de 70, em contraponto às teorias causalista e finalista da ação, preconiza que a Ciência do Direito Penal deve superar a conduta humana como centro do Direito Penal, relegando-a a um segundo plano. Segundo essa teoria, o ciência deve voltar-se à função do Direito Penal.
[3] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Trad. Luís Greco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 102.
[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. p.264.
[5] Elemento normativo é aquele que exige um juízo de valor, não mero juízo de cognição. Supralegal, pois não vem explicitado na lei, mas se infere do sistema.
[6] BITENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, 1.V., p.237
[7] JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte Geral. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 320.
[8] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 105.
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